Há alguns domingos, perdi meu estojo. Nele, estavam minhas canetas, meus lápis, a borracha, o apontador e todas as coisas que um estojo comporta. Num lapso, deixei no meio fio, num lugar aleatório do Minhocão — que tem sido um dos meus locais preferidos para ler, apesar de não ser tão reader-friendly (as costas que o digam). Ainda assim, costumo ir lá assim que o sol fica mais gentil, por volta das 16h. No dia, levei uma das minhas leituras daquele momento, “Norwegian wood”, do Haruki Murakami. Esse livro chegou até mim e, ano passado, decidi lê-lo pelo simples fato do título trazer uma música dos Beatles, banda que amo (quem lê a news há mais tempo lembra dessa edição aqui, inclusive)1.
Eu engatei na leitura. Gosto de chamar essa etapa de “voo de cruzeiro”, que é quando pego um ritmo constante no livro e nem percebo, só vou fluindo junto com o autor. Essa expressão é uma referência a uma etapa no voo dos aviões que, quando atingem determinada altitude, por conta da baixa densidade do ar, conseguem usar menos combustível e alcançar maior velocidade. Quando estou nesse voo de cruzeiro, fico completamente concentrada na leitura, e esqueço do mundo externo. Só paro de vez em quando pra refletir sobre o que li e, nessas, acabo pescando uma ou outra conversa alheia — uma interrupção bastante justificada, vamos combinar, né?
Acho que em uma dessas divagações me lembrei de quem era, onde estava, e percebi que já estava ficando escuro e ventava um pouco, então decidi voltar para casa. Não olhei para trás e só fui embora, sem imaginar que deixaria algo ali, literalmente, no meio da rua. Já em casa, quando fui procurar o estojo, não encontrei. Perdi. O que parecia mais um esquecimento banal, ganhou uma proporção que não previa.
O tal estojo foi uma das primeiras compras que fiz quando cheguei em Lisboa para o meu intercâmbio de 6 meses, em 2013. Ele fez parte daquelas compras de início de ano letivo da faculdade e lembro que queria algo que combinasse com tudo o que eu levava na mochila. Então, entre as opções, escolhi esse: marronzinho, básico, bem maleável, pequeno, mas com espaço mais do que suficiente para as minhas obsessões de papelaria.
Por muito tempo (7 anos!), sentia que não precisava comprar mais nenhum estojo, que esse estava mais do que suficiente. Ele me acompanhou no intercâmbio, veio para o Brasil, terminou a faculdade comigo e era o companheiro das minhas peregrinações por cafés e leituras fora de casa. É engraçado que, sempre que entrava em alguma papelaria, fuçava a área de estojos e nunca encontrava nenhum para substituí-lo. Com frequência pensava: “eu tenho o estojo perfeito, não preciso de um novo”. Por mais engraçado que possa parecer, eu realmente tinha essa conversa na minha cabeça.
Então, perdê-lo assim, de um jeito tão bobo e fulminante, me entristeceu. E, na minha memória, começaram a passar vários filmes sobre esse período de 7 anos com o bendito estojo, me fazendo relembrar de etapas da minha vida, e algumas das etapas que precisei ultrapassar para chegar até aqui.
Tudo isso acabou virando uma grande história para comentar na terapia da segunda-feira — e, como meu psicanalista não deixa passar nada, ele começou a tentar destrinchar a simbologia desse estojo na minha vida atualmente. Em suma, deixar esse estojo para trás, com tantas lembranças, é uma maneira concreta da vida começar a mostrar que preciso também deixar algumas histórias no passado e seguir em frente. É importante resgatar lembranças para estruturar a minha própria narrativa, me reconhecer como ser humano, mas também não me prender ali. Deixar que novos estojos e novas lembranças possam, agora, fazer parte da história. A perda leva à falta e ela leva a novos desejos.
Coincidentemente ou não, "Norwegian wood” fala bastante sobre perdas, faltas e desejos. Toru, Kizuki e Naoko (namorada de Kizuki) eram três amigos inseparáveis e estavam começando uma nova etapa entrando para a faculdade. Num dado momento, eles são pegos de surpresa pelo suicídio de Kizuki e precisam lidar com essa notícia dolorosa. Toru, o narrador da história, decide manter seu contato com Naoko, até que os dois se apaixonam. Um dia, Toru recebe um comunicado de Naoko avisando que ela está se internando em uma clínica psiquiátrica para tentar se recuperar — a dor ainda é imensa e, por mais que Toru tente, parece que algo se quebrou para sempre.
Paralelamente à sua relação com Naoko, Toru constrói uma conexão intensa com Midori, sua colega de classe, e, num dos primeiros encontros dos dois, ela o leva para visitar o pai hospitalizado.
Em seus olhos era possível ver que aquele homem não tardaria a morrer. Praticamente não se podia distinguir sinais de vida em seu corpo. Só restavam nele as ruínas frágeis e minúsculas de uma existência. Seu corpo parecia uma velha casa que, removidos todos os móveis e acessórios, aguarda apenas a demolição.
(Traduzido por Jefferson José Teixeira, p. 226)
O trecho acima tirei da cena em que Toru encontra o pai de Midori — e me impactou demais. Fiquei nele um bom tempo e fui transportada para o momento em que vi meu pai deitado na cama do hospital, desacordado e entubado. O dicionário, por mais maravilhoso que seja, é limitado. E, por isso, precisamos tanto da poesia e da literatura: para preencher as lacunas quando o idioma falha. Naquele instante, vi meu pai como uma velha casa, cujos móveis e acessórios já tinham sido removidos. Murakami soube colocar em palavras algo que eu só consegui sentir.
“Norwegian wood” fala sobre perdas de pessoas próximas e queridas, sobre memória e sobre luto. uma perda não implica apenas na falta, mas também em lembranças resgatadas, profundos questionamentos sobre a vida e o universo. A morte é um assunto misterioso, intenso e inesgotável — porque, de um ponto de partida, podemos tomar inúmeros caminhos, questionar perspectivas que sequer sabíamos que existiam. Perder o que era tão significativo pra gente é uma maneira de analisar a nossa própria existência, nosso passado e nosso futuro. Para além disso, nos fazem perguntar “como posso ser uma pessoa melhor a partir de agora? Como posso me alinhar de modo mais íntimo com o meu caminho e o meu propósito?”. As respostas nunca são simples, mas esboçam um norte, ao menos.
O livro do Murakami, em seu sentido mais óbvio, se conectou a mim também pelo título. “Norwegian wood” é uma música dos Beatles, como disse anteriormente. Reiko, uma das personagens da obra, gostava de tocar a melodia no violão, porque deixava Naoko feliz. The Beatles só virou a minha banda preferida por causa do meu pai, que me apresentou quando eu tinha por volta dos 11 anos de idade. Lembro que, na época, fiquei tão apaixonada que até fiz um trabalho para a matéria de Inglês na escola com a música “Can't buy me love”. Dia desses, me perguntando como poderia trazer meu pai mais pra perto de mim, coloquei uma playlist dos Beatles pra tocar. Chorei, é claro. Essa era uma paixão que dividíamos com muita intensidade. Visitamos a Abbey Road, em Londres, e assistimos só nós dois ao show do Paul McCartney, em Belo Horizonte. Foram momentos inesquecíveis que guardo com muito carinho no lugar mais amoroso da minha memória.
Acho que a perda do estojo, uma coisa tão simples, me fez dar um passo para trás e olhar tudo o que se passou nesse período de 7 anos. Pra mim, é um número meio místico, cabalístico — são 7 dias na semana, 7 cores do arco-íris, 7 maravilhas do mundo, 7 “vidas” dos gatos. Os números de onde moro, se somados, também dão 7. Sei lá, eu poderia passar ilesa por essa experiência, mas preferi usá-la para estruturar uma reflexão sobre as coisas que andaram acontecendo comigo e que, de alguma maneira, não conseguia ainda elaborar por conta da bagunça que andava a minha cabeça. Talvez eu precisasse realmente disso.
uma indicação cinematográfica:
“A despedida” (Lulu Wang, 2019) é um dos filmes mais lindos que vi no ano passado, um pouco depois de perder a minha avó por parte de pai. É uma narrativa sensível sobre uma família que se reúne para vivenciar os últimos momentos da adorada avó Nai Nai, mas sem contar para ela que possui apenas poucos dias de vida. A história é inspirada na própria vida da diretora.
uma lembrança:
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Olha só que coincidência (será?). Nessa mesma edição da newsletter que citei, comento na parte de “lendo” sobre um livro do Murakami que comecei a ler — e comento que preciso voltar e terminar “Norwegian wood”. Bom, aqui estou eu, com a leitura finalizada! :D
Que lindeza amiga, um abraço bem forte em você.
Eita, Gabi! Que beleza de texto. Você escreve muito bem! Tudo amarradinho, feito uma colcha de retalhos. Fica ainda mais bonito quando vemos que quem amarrou foi a vida e você só teve a perspicácia de perceber e o trabalho ( um belo trabalho ) de transpor para as palavras. 👏🏿 Adorei!