Conversando com a minha mãe ao telefone essa semana, contando algumas das coisas que aconteceram comigo no último mês, ela compartilha sentir que estou me tornando cada vez mais eu mesma. Ela consegue verbalizar com tanta naturalidade que me assusta, já que levei um tempo para perceber e contar isso para o meu terapeuta. No momento que minha mãe traz a sua leitura da situação, eu viajo direto para minha infância, tentando resgatar nela sinais que justifiquem as atitudes que deram as caras novamente depois dos meus 30 anos.
Sempre ouvi que o passado é um lugar de visita, não de morada. Ele funciona como um destino temporário, em que encontramos pedaços de nós mesmos que ficaram pelo caminho conforme vamos nos submetendo às pressões sociais, ao capitalismo, à vontade de agradar o outro, para podermos analisar melhor cada atitude e ter pistas de onde elas surgiram. Para mim, creio que o passado seja um lugar de consulta. Vez ou outra, volto a ele pra ver se o caminho que decido tomar faz sentido na minha história e em quem eu sou. Não que não possamos mudar completamente nossos objetivos e prioridades ao longo dos anos — ainda bem temos a capacidade de mudar de ideia e sou grata por não ter seguido algumas das minhas vontades de criança —, mas grande parte da nossa formação como seres humanos se dá na nossa infância. Ali já damos pequenos indícios de que tipo de adulto podemos nos tornar, especialmente em relação à constituição da nossa personalidade e do delineamento das nossas paixões.
Nessa breve viagem ao passado, percebo que todas as coisas que gostava durante a infância foram dando lugar a uma extrema necessidade de me adequar às condutas sociais. Fujo das coisas que amo e que me fazem feliz pra agradar os outros e, tristemente, percebo hoje que tinha uma convicção doentia de que os “meninos” não iriam gostar de mim se eu fosse quem era. E aqui insiro uma observação: o termo “meninos” foi começando a abranger cada vez mais pessoas conforme fui avançando nas etapas da vida. “Meninos” também passaram a se referir aos meus colegas de escola, de faculdade, professores, colegas de trabalho, chefes, amigos dos meus namorados. De várias maneiras, cerceei quem eu era pra poder me sentir parte de grupos que imaginava dever pertencer. É curioso. Não que eu quisesse muito fazer parte desses grupos, eu só achava que deveria pertencer a eles. As paixões que me acolhiam quando criança se tornaram motivo de vergonha da minha adolescência em diante — adolescência essa que é uma grande maçaroca de desespero, sofrimento e caos que não sinto nem um pouco de saudade.
Nos meus pensamentos, um letreiro em neon quase me cegava avisando que era errado gostar de animes. Que era errado ficar muito tempo no computador. Que gostar de videogame era coisa de menino. Que era errado encher meu espaço com coisas fofas. Que era errado gostar de rosa porque rosa era cor de gente fraca. Que era errado colocar o meu bem-estar na frente do bem-estar do outro. E eu poderia colocar uma lista sem fim que iria de coisas menos relevantes até as mais importantes que me trouxeram no ponto que estou hoje. Uma pergunta que, hora ou outra, aparece é “quem eu seria se não tivesse sido tão cruel comigo mesma?”. Ela é impossível de responder, porque se baseia em suposições e apostas, e não no cenário concreto. Mas eu tenho a impressão de que sempre nos colocamos nessa posição de fazermos os questionamentos mais absurdos de forma que cheguemos em algum lugar com isso, mesmo que esse lugar não seja a resposta definitiva.
Me perguntar sobre as coisas que faço, do que gosto, o que quero, com quase 33 anos possui um sabor diferente. Sempre ouvi de amigas que a partir dos 30 a gente vai se tornando cada vez mais si mesma. E um dos motivos pelos quais isso acontece é que simplesmente começamos a nos liberar de uma validação externa, porque buscar em fatores externos o que somos passa a não fazer nenhum sentido. Não digo que é um movimento perfeito e linear, porque aí eu não estaria falando da vida real e sim de uma vida imaginada, mas é um avanço perceptível e palpável não só pela gente, mas pelas pessoas que também nos rodeiam.
Quando me permiti falar sobre literatura asiática, sobre o aprendizado de japonês, sobre organização, sobre itens de computador, sobre setups, sobre tecnologia… foi quando eu percebi que esse era um lugar extremamente confortável pra mim. Não me parecia forçado, parecia só que eu tinha dado uma pausa de anos nas minhas paixões de infância e retomado agora. Comentei com a Jess que, ainda, falar sobre tecnologia, computador e videogames é algo que me conecta a um curto período de tempo que morei com meu pai.
Meu pai uma vez, conversando comigo, disse que, se pudesse voltar no tempo, não teria tentado medicina e, sim, ciência da computação. A pressão da família o fez pegar um caminho que não queria, silenciando as suas paixões por uma demanda de status social, porque, afinal, é um orgulho falar que existe um médico na família. Ironicamente penso que, se ele tivesse seguido o sonho e cursado ciência da computação, ele teria ganhado muito mais dinheiro e podido ajudar mais a família. Mas é isso, a vida não tem ensaio, e vamos levando as coisas da maneira que dá, com as ferramentas que temos.
Então, por mais bobo que pareça organizar a mesa de trabalho, montar um teclado, recomendar jogos de Nintendo e sugerir animes, tenho a certeza absoluta de que acessei um lugar de mim mesma que há muito tempo foi escondido por vergonha. E uma das coisas mais mágicas é perceber que, hoje, eu tenho poder aquisitivo pra comprar coisas que a Gabriela criança ainda não podia, porque meus pais nunca foram ricos e as contas todas eram acompanhadas pela ponta do lápis.
Me surpreende perceber como essa movimentação toda é também vista por pessoas externas, e que a minha mãe foi só uma delas. Recebi algumas mensagens no Instagram que me surpreenderam, de gente que percebeu uma mudança, que me sentiu mais confortável e mais feliz comigo mesma. Deixar transparecer foi acidental, não imaginei que qualquer pessoa pudesse identificar qualquer coisa nas minhas atitudes ou nos assuntos que comecei a falar. Eu só permaneci conversando, dividindo com os outros as coisas que me interessam e que eu penso serem interessantes, como eu sempre fiz na minha presença digital. Mas é muito gratificante poder ver que a mensagem ultrapassa a mim mesma. Que a maneira de me portar e a forma de compartilhar já diz muito sobre essas mudanças internas.
É preciso coragem pra nos tornarmos nós mesmos, mas, percebo agora, é o único caminho que acho fazer sentido trilhar.
Na última edição da news, avisei que abri uma comunidade no Twitter pra gente começar a conversar por lá. No print, tinham 60 membros e hoje temos 95! Estamos crescendo e falando com frequência lá sobre cultura asiática para além dos livros. E eu ficaria muito feliz se você viesse participar também e dar as suas contribuições no grupo, vem comigo:
links que apareceram no nosso grupo do Twitter:
animes que tô assistindo:
Já que falei sobre animes, trago alguns que tenho curtido bastante ultimamente e que acho que valem o seu play (aliás, esse é um assunto que também vai pro meu Instagram em breve!).
DIY - Do It Yourself | Crunchyroll | Um anime bem recente, desse ano, que fala sobre uma garota desajeitada e desastrada que começa a fazer parte de um grupo da escola de faça-você-mesmo. Esse é uma daquelas animações que, sob uma simplicidade esconde questões profundas e muito interessantes.
Romantic Killer | Netflix | Uma menina que sempre fugiu de relacionamentos com jogos de videogame, chocolate e gatos é surpreendida com a presença de uma BATATA MÁGICA que faz de tudo pra ela encontrar o amor da sua vida. É surreal de tão engraçado!
Evangelion | Netflix | Apesar de ter ouvido muito falar sobre esse anime na infância, nunca tive a oportunidade de assistir. Agora, tô correndo atrás do prejuízo e percebendo que ele é uma animação super pesada, que não consigo maratonar. Mas é daquelas produções que podem render vários estudos acadêmicos sobre as questões levantadas.
Haikyū!! | Crunchyroll | Eu comecei a assistir durante o início da pandemia, mas acabei pausando, então aproveitei pra retomar a 3ª temporada de onde parei e matar a saudade desses personagens tão cativantes. Jamais imaginaria que um anime de vôlei me deixaria tão encantada.
Que coisa gostosa ler seu texto, Gabi! Saiba que sua partilha ressoou muito por aqui e acho maravilhoso ver as pessoas cada vez mais confortáveis em serem o que quiserem, falarem do que quiserem... E é gostoso ver a empolgação somada ao conforto de falar sobre algo que é importante e tem significado pra si mesmo. Parabéns pela sua jornada e obrigada por inspirar!
Oi, Gabi, tudo bem?
Te acompanho faz alguns anos e essa é a primeira vez que te envio uma mensagem!
Percebi uma mudança no seu comportamento por aqui e eu me identifico muito bom isso e com as palavras que você usou pra noa contar tudo que está acontecendo.
Com 30 anos, percebi que buscar validação externa realmente não faz sentido e que, fazendo isso, muitas vezes deixamos de ser quem queremos e temos vontade. Como o olhar do outro atrapalha no desenvolvimento da nossa fiel personalidade, né?
Esse é um tema frequente na minha Terapia e fiquei feliz por você compartilhar isso. Me deu uma luz e segurança de saber que no estou sozinha, que pessoas que eu admiro e que estão próximas a mim, também passam por isso.
Que bom que dá tempo de mudar!
Ainda tenho bloqueios na Internet e vergonha de fazer algumas coisas e compartilhar com amigos, por exemplo, falar sobre os livros que leio... Isso é uma coisa que eu adoro e sempre quis fazer, mas sempre acho que a minha opinião é irrelevante, porque não sou da área de letras ou algo do tipo, hehe.
Enfim, bloqueios e inseguranças.
Mas que felizmente dá pra melhorar.
Obrigada por compartilhar.