Decidi, numa quinta-feira qualquer, ir ao cinema. O que não é um esforço tão grande já que tenho uma ótima opção quase do lado da minha casa. Fucei no site de ingressos pra ver se tinha algum lugar disponível para o filme que gostaria de assistir neste dia, e, pra minha surpresa, estava sobrando espaço. Terminei de trabalhar, me arrumei e fui lá para meu date comigo mesma. Comprei meu lugar para assistir a Dias Perfeitos, do Wim Wenders, um filme que queria ver há tempos, mas ainda não tinha conseguido. A sala estava vazia, era eu e mais umas 4 ou 5 pessoas, aquele tipo de surpresa boa quando se vai ao cinema em dia útil. Saí da sessão extasiada, louca pra falar do filme com mais gente e de criar algo. Enquanto assistia, o filme foi me inundando de pensamentos, de referências, de percepções. E nada na vida se iguala à sensação de ser tocada profundamente pela arte.
E foi justamente a arte, em suas diversas formas, que me conduziu por aquela história. Hirayama, o pacato protagonista, é um funcionário do projeto The Tokyo Toilet, cujos banheiros públicos são referência no mundo todo pelo design e pelo esmero na sua manutenção e limpeza. Quando não está limpando, organizando, varrendo, Hirayama-san ocupa seus momentos com a arte. Pela fotografia, ele registra a luz do sol perpassando as folhas das árvores — efeito que é chamado de komorebi (e sempre lembro da Anna quando vejo essa palavra) — enquanto almoça tranquilamente em um templo budista. Ao se deitar, é a literatura que o faz companhia e, enquanto um livro favorece o sono, o outro o deixa acordado por bastante tempo. Já a música é companhia de todas as manhãs no caminho para o trabalho, companhia de todas as noites, ao retornar para casa, e companhia aos finais de semana, quando tira um tempinho para rebobinar suas fitas K7 e ouvir mais um pouco dos seus álbuns preferidos.
Seu nome, Hirayama, pode significar montanha pacífica, o que eu acho um acerto bem calculado na criação do personagem. Ao longo das duas horas de filme, percebemos que esse foi o ritmo que ele impôs para a sua vida. Um caminhar lento, porém atento ao seu redor: às pessoas, aos cheiros, aos sons, às sensações. Ele vive sendo inundado pelos estímulos que o mundo tem a oferecer e, assim, o filme argumenta que uma vida tranquila não é sinônimo de previsibilidade. Há elementos recorrentes, como o barulho da vassoura limpando a entrada do templo, as plantinhas na estufa improvisada que precisam de água e luz, o ritual de se preparar para o trabalho todas as manhãs… Mas mesmo eles sofrem pequenas alterações. A limpeza que acontece minutos antes ou depois do que o costume, a planta nova que agora cresce junto às outras na estufa, a meia diferente que se escolhe pra fazer parte do uniforme de trabalho.
Existe uma palavra japonesa, shibui, que fala sobre elementos aparentemente simples que trazem consigo a complexidade da vida. O conceito está presente não só nas mais variadas formas de arte (moda, arquitetura, gastronomia), como também pode ser usado pra caracterizar pessoas, lugares, situações. Algumas vezes, a palavra é utilizada para reforçar que é necessário prestar atenção para perceber a beleza no que é ordinário. Muitas vezes, batemos o olho em uma escultura que foi feita com materiais banais, mas, ao parar para analisar todos os elementos, percebemos que há texturas, formas e usos diferentes do que estamos acostumados. Conseguimos perceber que ela não é tão comum quanto parece.
Pra mim, essa é a sensação que o filme me trouxe. O cotidiano de Hirayama, o nosso cotidiano, traz surpresas que só quem está atento o suficiente para além do óbvio consegue ver. Os dias parecem iguais, mas não são. Nesse contexto, a arte em suas diversas formas ajuda a definir o tom. Escolher aquele álbum e não outro como trilha sonora para ir ao trabalho. Escolher aquele livro e não outro para fazer companhia durante as noites. Escolher aquele momento e não outro para registrar em uma fotografia. E aí, deixar que a vida traga situações e pessoas que interrompem a música, que atrapalham a leitura, que aparecem na fotografia.
Apesar de uma vida solitária, ele não parece estar sozinho. Ele se deixa perturbar pelas relações que aparecem no meio do caminho, seja lidando com o caos do colega de trabalho, com o aparecimento da sua sobrinha nas escadas do prédio ou com os demais clientes do restaurante que insistem em ouvir a dona cantar. Ainda que a arte seja fonte de muita companhia para os seus dias, e algo vital para sua existência, Hirayama-san percebe que há também magia no encontro com o outro. Que as relações que construímos também são uma forma de arte. Ou de, pelo menos, vivenciar a arte de uma maneira diferente. A cena dele e da Aya ouvindo Patti Smith no carro é um bom exemplo disso.
O ritmo que o protagonista decide viver vai na contramão do que é imposto pelas cidades grandes como Tóquio. Há 4 anos morando em São Paulo percebo que, muitas vezes, a capital me mastiga e me cospe. Mas é possível criar situações em que o mundo se torna um pouco mais agradável de habitar — seja com a arte, seja no encontro com outras pessoas, seja apreciando as belezas do dia a dia. É preciso apenas estar atento para o que parece mundano, mas que esconde em si a semente de uma vida repleta de boas surpresas; como assistir a um filme incrível em plena quinta-feira.
nossa, eu gostei muito dessa análise do filme e desses detalhes que ele traz pra nossa vida, inclusive. Obrigada por esse texto que me fez parar e refletir sobre o que eu quero pra mim vivendo em uma cidade grande como São Paulo, que não é onde eu nasci mas estou vivendo.
Não assisti ao filme, mas na parte que você fala sobre a palavra shibui lembrei dos nossos queridos livros sobre o cotidiano. A beleza e a complexidade da vida comum, sem cair numa autoajuda.